DIARIO DE PARIS N° 8 - 15 DE JUNHO DE 1999

PIXINGUINHA EM PARIS

+++ "Amor da minha vida, gênio querido e humano": era
assim que Tom Jobim se referia a Pixinguinha. Vinicius disse que se
não fosse Vinicius gostaria de ser Pixinguinha, um ser maravilhoso
que amava o proximo como a si mesmo. Certa vez, Dona Beti, sua
esposa, foi internada em um hospital com graves problemas de saude e,
dias depois, Pixinguinha foi internado no mesmo hospital com
problemas cardiacos. Ele não quis que a esposa soubesse, para não
agravar ainda mais o seu estado de saude, e, quando ia visita-la,
colocava o terno e ia até seu quarto como se estivesse vindo de
casa. E nesta época jah se iam 45 anos de casamento. Anelise
Storck, que entre outras tantas qualidades tem um conhecimento
enciclopédico sobre musica popular brasileira, me levou para
conhecer o prédio onde funcionou, no inicio do século, o
"Dancing Sherazade", local onde Pixinguinha se apresentou
em 1922. Localizado na Rue du Faubourg Montmartre, n° 16 (Paris
IX), o "Sherazade" ha muito tempo deixou de ex

+++ A vinda de Pixinguinha (Alfredo da Rocha Viana Filho) a Paris
nasceu na cabeça de um dançarino de maxixe chamado Manuel Diniz,
o "Duque" (brasileiro), que tinha uma academia de dança
brasileira em Paris e gostava muito dos "Oito Batutas",
grupo do qual Pixinguinha fazia parte. Duque interpretava as musicas
dos Oito Batutas nos pés e assumiu, em 1921, a direção
artistica do elegante "Dancing Sherazade". Ele dançava com uma
francesa chamada Gaby. Numa das raras vindas de Duque ao Brasil, teve
a oportunidade de dançar ao som da musica dos Oito Batutas, no
Assirio (no subsolo do Teatro Municipal). O convite foi feito e a
viagem foi bancada por Arnaldo Guinle. Guinle vivia mais em Paris do
que no Brasil e tinha uma mesa especial no Sherazade.

+++ Os Oito Batutas embarcaram para a Europa no dia 29 de janeiro de
1922, chegando ao porto de Bordeaux, no dia 11 de fevereiro de 1922.
De Bordeaux, seguiram de trem para Paris. Duque foi espera-los no
Quai D'Orsay (onde hoje fica o museu), numa noite em que fazia muitos
graus abaixo de zero. A cena deve ter sido cômica, menos para eles:
oito negrões acostumados ao calor tropical, batendo o queixo de
frio. No outro dia, sairam para comprar roupas de inverno. Mas eles
tinham outra arma para enfrentar o frio europeu. Certa vez, no final
do mês, o maître do Sherazade disse: "Olha, aquele que estah
ali (apontando para o Pixinguinha) tomou 120 litros de Negrita (uma
marca de rum) num mês". Fazia tanto frio que Pixinguinha dizia
nem sentir a quantidade de bebida que tomava. Ele tinha, na época,
25 anos. Durante sua estada em Paris, os Oito Batutas eram, na
verdade, sete: Pixinguinha, Donga, irmãos Palmieri (que não
puderam vir e foram substituidos por Feniano), Nelson Alves, Otavio
Viana "Chin

+++ Conta a lenda, que Pixinguinha fez muito sucesso entre as
francesas. Ele disse que teve de quatro a seis namoradas em Paris.
"Eh da mocidade", dizia. Mas confessou uma certa
dificuldade em fazer amigos franceses: "Eles não conversam
muito, não. São finos, gente delicada, mas muito sem tempo...na
minha época não era assim. A conversa era 'ça va? ça va? A
demain, a demain". Todos sentiam muita saudade do Brasil.
Segundo Donga (um dos oito batutas) esta foi a principal razão de
seu retorno para a terrinha. Certa vez, caminhando por uma rua de
Paris, eles começaram a assobiar uma valsa do pianista Manuel da
Harmonia (companheiro do grupo nas rodas de choro e nas atividades
carnavalescas). Acabaram chorando como crianças. A saudade era
grande.

+++ Eles não tocaram somente no Sherazade, mas também numa festa
no Palais des Affaires Publics e em duas casas abertas por Duque: uma
delas levava seu nome e a outra se chamava "La Reserve de
Saint-Cloud". Quando sairam do pais, surgiram muitas vozes
descontentes dizendo que era uma desmoralização para o Brasil
mandar uma orquestra de negros para Paris. Os ataques foram
publicados em varios jornais do pais. Um tal de A.Fernandes, do
Jornal de Pernambuco, escreveu que não sabia "se a coisa era
para rir ou chorar". O Jornal do Comércio, também de
Pernambuco, lamentou "não haver uma policia inexoravel que,
legalmente, os fisgasse pelo cos e os retirasse de bordo...".
Por aqui, a reação foi bem diferente. Os franceses adoraram. O
jornal "Le Journal" (é isso mesmo!) publicou: "Cet
extraordinaire orchestre bresilienne, unique au monde, d'une gaité
endiablée, composé de virtuoses surnommes les rois du
rytme". No dia primeiro de agosto de 1922 eles embarcaram de

+++ Paris teve uma influência decisiva no trabalho de Pixinguinha.
Foi aqui que ele conheceu o sax. Quando voltou de Paris, passou a
dedicar-se exclusivamente a este instrumento. Segundo Brasilio
Itiberê, da Escola Nacional de Musica, as criações de
Pixinguinha com o sax foram "um dos elementos mais complexos e
de maiores conseqüências estéticas existentes na musica popular
brasileira". Foi aqui em Paris que ele tocou sax pela primeira
vez. Havia um conjunto que tocava numa casa em frente ao Sherazade.
Um dos musicos resolveu trocar o violoncelo pelo sax. Arnaldo Guinle
perguntou a Pixinguinha se ele tocava aquele instrumento. Ele disse
que sim, pois jah conhecia a escala, que era quase igual a da flauta.
Um mês depois, Guinle mandou um sax de presente para Pixinguinha.
Escrupuloso, Pixinguinha so tocou sax uma vez aqui em paris (para
Guinle). Não queria magoar o musico da casa vizinha. Este era
Pixinguinha, "gênio querido e humano", como disse Tom
Jobim.


PROUST NA TELA

+++ O filme "Le Temps Retrouvé", do diretor chileno Raoul
Ruiz, não é de facil compreensão e digestão para quem não
tem nenhum contato com a obra de Proust. Assisti-lo não é tão
dificil quanto ler a "Recherche", mas jah antecipa algumas
das dificuldades: ritmo lento, profusão de personagens, narrativa
fragmentada. O filme começa com Proust (vivido pelo ator italiano
Pascal Greggory) deitado em sua cama, em seu quarto escuro, sofrendo
uma das derradeiras crises de asma, que acabariam por lhe matar.
Sabendo que o fim se aproxima, o escritor entrega-se às suas
recordações. Como fantasmas, elas invadem o quarto e o espectador
é convidado à dificil tarefa de compreender de que modo elas
ajudam Proust a "reencontrar o tempo perdido".

+++ "Le Temps Retrouvé" é o livro final de "A la
Recherche du Temps Perdu". Apos alguns anos passados em um
sanatorio, o heroi-narrador retorna a Paris durante a Primeira Guerra
Mundial. Ele reencontra o circulo dos Verdurin, suas reuniões
sociais, onde a inveja, a vaidade e a frivolidade são mercadorias
comuns. Terminada a guerra e apos uma nova longa estada numa casa de
saude para se recuperar de constantes crises asmaticas, ele volta
mais uma vez a Paris e vai a uma reunião na casa da nova princesa
de Guermantes, que não é outra que Mme. Verdurin, viuva e casada
mais uma vez. Ele experimenta diversas sensações: as pedras
irregulares na calçada, o barulho de uma colher, o contato com um
guardanapo provocam nele uma série de reminiscências
involuntarias. Esperando o intervalo de um concerto, sentado na sala
da biblioteca do principe de Guermantes, ele tem a revelação que
as lembranças involuntarias nos permitem entrar em contato com uma
realidade eterna. Ele descobre a importância, e

+++ Pronto a escrever um livro a partir de sua propria experiência,
ele concebe o tempo passado como um conjunto de relações entre os
seres e os acontecimentos. O tempo é também para ele, que esta
doente, uma incitação a escrever, por fragmentos justapostos, uma
obra comparavel a uma catedral. Costurando fragmentos de memoria,
procura o eterno em meio ao transitorio. Através de suas
recordações, que funcionam como a passagem por uma iniciação,
busca uma verdade essencial sobre o mundo. Ele é tomado por apelos
que lhe ocorrem através da leitura, de obras de arte, do teatro, de
espetaculos da natureza, do desejo sexual, de incidentes ao longo de
seus passeios.

+++ No caminho percorrido até a revelação final, Proust usa e
abusa de uma concepção particular da metafora, paralela àquela
da memoria involuntaria: dois elementos, separados no tempo e no
espaço, podem ser aproximados pelo espirito, resultando na
descoberta de uma essência, de um momento de eternidade. A metafora
é, para Proust, a face retorica daquilo que, do ponto de vista
psicologico, produz a memoria involuntaria. Do mesmo modo que uma
lembrança involuntaria nos faz extrair de dois fatos reais um
momento de eternidade, a metafora nos põe em contato com um
elemento da mesma natureza. Faz isso aproximando uma qualidade que
é comum a duas sensações. O filme, assim como a obra de Proust,
esta repleta destas aproximações.

+++ A concepção de tempo adotada por Proust, e respeitada por
Ruiz, é aquela de um tempo descontinuo, espacializado, no qual soh
constatamos uma evolução por causa de mudanças bruscas que
afetam personagens e situações. Um tempo, como diz o titulo do
livro, considerado como perdido, não somente pela referência a um
passado distante, mas pela impressão de inutilidade: as horas
gastas com lazeres futeis, férias, jogos amorosos mal-sucedidos,
ascensão mundana seguida de decepção. Esta impressão
experimenta seu apice na tarde fatidica na reunião na casa da
princesa de Guermantes, onde os personagens envelhecidos vagam
perdidos pelo salão, maquiados por suas rugas e cabelos brancos.
Mas este é também o momento em que o heroi reencontra o tempo, de
duas maneiras: compreendendo que as lembranças involuntarias
permitem acessar realidades extra-temporais (e este "tempo
puro" permite salvar os momentos privilegiados do passado e os
instantes presentes aos quais eles estão ligados); compreendendo,
além di


A VIDA TRANSFIGURADA PELA ARTE

+++ Uma das "lições" deixadas por Proust é que a vida
pode ser transfigurada pela arte. Através dela, podemos entrar em
contato com algo que não é transitorio, que não desmancha entre
nossos dedos, que nos envia para um outro dominio, onde a perspectiva
da morte parece menos dolorosa. Ha uma inegavel dimensão tragica na
vida e na obra de Proust, que pode ser resumida pelo que escreveu
Pierre-Henri Simon, em "La Pensée Tragique de Marcel
Proust: "Uma natureza nervosa, impressionavel, movel; uma faculdade de
analise e de introspecção tão aguda que decompõe o sentimento
da personalidade; como conseqüência, uma obsessão dolorosa da
morte, não da morte que, uma vez por todas, faz desaparecer nossa
consciência de seres terrestres, mas aquela que, mais sutil e mais
obstinada, confunde-se com nossa existência, pois, a cada instante
de nossa duração, ha uma parte de nos mesmos que cai no vazio:
eis o que encontramos antes de mais nada em Proust, e é dessa
angustia inicial que é preciso partir para explicar o movimento de
seu pensamento, o sentido de sua obra e até mesmo desde a qualidade
de sua arte até os acentos de seu estilo".

O filme retrata bem esta atmosfera, o que constitui, ao mesmo tempo,
sua principal virtude e sua principal dificuldade.


Por hoje era isso.

Marco Aurélio

[email protected]